Todo mundo o
chama de Luto. Na verdade, ele se chama Anacleto. Muitos não entendem como um
cara tão falador e animado tem esse apelido sombrio, mas o Luto do Anacleto não
tem nada a ver com morte. É que ele desembesta a falar toda vez que tem uma
posição a defender. Com isso, começa uma frase, interpõe outra ideia no meio e
volta à ideia original, terminando a frase. Um amigo chato, metido a gramático,
uma vez, disse que o nome dele não devia ser Anacleto e sim Anacoluto. Por um período,
a coisa pegou, mas apelido que é maior do que o nome não costuma durar muito
tempo. O pessoal foi reduzindo, começou a falar só Coluto e, depois de poucas
semanas, virou só Luto. E assim ficou pra sempre.
Pois bem.
Estávamos em nosso papo altamente politizado, com todos concordando que o país
não tinha jeito, que “lá em cima” é todo mundo ladrão, bandido, canalha,
trambiqueiro e todos os adjetivos que um grupo consegue levantar em uma mesa
quando o garçom, solícito, não para de abastecer com o néctar amarelo da
verborragia. O Luto estranhamente quieto. Até que alguém cobrou isso e exigiu,
com veemencia apoiada no direito, na razão, na ética e no quinto copo cheio,
que o Luto se manifestasse.
- Eu não acho,
já que vocês insistem na minha opinião, que a coisa seja assim tão feia, acho
feia mas nem tanto, quanto querem que seja.
Depois de
tonitruantes protestos e de uma bandeja com um resto de batatas fritas virada
na mesa por mãos esbravejantes, o Luto prosseguiu:
- Pra mim, vocês
falam de corrupção, propina e tudo isso aí, esse papo é como gorjeta pro
garçom. Se o garçom atende bem, é simpático, se o pessoal gosta dele, no final,
depois de pagar a conta, a gente gostou do cara, curtiu até as piadas dele, rola uma gorjetinha por fora. O garçom fica
feliz, o nosso, aqui, sempre fica, e, na próxima vez que a gente vem, a gente
vem ao mesmo lugar com frequencia, ele atende melhor ainda e leva outra
gorjeta. Isso é normal e não tem nada de criminoso. Certo?
Todos
concordaram. O Luto surpreendeu com outra resposta:
- Errado! Se
alguém quiser, pode levantar o ponto de vista de que a gorjeta não é contabilizada
pelo estabelecimento, alguém pode alegar isso, nem vai ser declarada pra Receita como renda
do garçom. E pode-se dizer que, em troca desse dinheiro “por fora” o garçom
favorece quem dá a melhor gorjeta, mesmo nós já demos a mais, atendendo melhor.
Percebem? Basta usar as palavras certas e uma gorjeta pro garçom vira vários
crimes, uma coisa pode virar crime sem ter sido vista assim antes, contra a
Receita Federal, contra o direito de bom atendimento de uma clientela, contra o
faturamento do restaurante, contra a igualdade entre garçons, profissionais que
exercem exatamente a mesma função... Os garçons todos se tornam corruptos e os
clientes todos, argumentos e provas não vão faltar, se tornam corruptores.
Investigações serão iniciadas e só irão parar quando todos os garçons forem
presos, prender malfeitor é o que todo mundo quer, e todos os clientes forem
responsabilizados. Por uma coisa que ninguém estava fazendo como crime, todo
mundo acha que é um estímulo normal a gorjeta, uma coisa que todos concordavam
que era assim que se fazia. Tanto que todo mundo fazia! É assim que eu, não
estou querendo impor, vejo essa história de políticos. Política sempre se fez
assim, no Brasil e no mundo, hoje e na antiguidade. É bonito? Não! É certo?
Acho que não! É decente? Duvido! Mas são criminosos e formam quadrilhas
altamente mal-intencionadas? Não garanto! Afinal, em proporções gigantescas,
estavam só levando a gorjeta do garçom.
Já estava na
hora de todos irem embora e ninguém quis desenvolver a discussão com o Luto.
Pedimos a conta, pagamos e nos despedimos amigavelmente, marcando outro papo
pra semana seguinte. Mas o nosso garçom achou muito esquisito o fato de, desta
vez, ninguém ter deixado a gorjeta dele. Por via das dúvidas.
Olá, foi um caso real este? Ou crônica fictícia? Obrigado
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