quarta-feira, 24 de maio de 2017

GORJETA DO GARÇOM

Todo mundo o chama de Luto. Na verdade, ele se chama Anacleto. Muitos não entendem como um cara tão falador e animado tem esse apelido sombrio, mas o Luto do Anacleto não tem nada a ver com morte. É que ele desembesta a falar toda vez que tem uma posição a defender. Com isso, começa uma frase, interpõe outra ideia no meio e volta à ideia original, terminando a frase. Um amigo chato, metido a gramático, uma vez, disse que o nome dele não devia ser Anacleto e sim Anacoluto. Por um período, a coisa pegou, mas apelido que é maior do que o nome não costuma durar muito tempo. O pessoal foi reduzindo, começou a falar só Coluto e, depois de poucas semanas, virou só Luto. E assim ficou pra sempre.
Pois bem. Estávamos em nosso papo altamente politizado, com todos concordando que o país não tinha jeito, que “lá em cima” é todo mundo ladrão, bandido, canalha, trambiqueiro e todos os adjetivos que um grupo consegue levantar em uma mesa quando o garçom, solícito, não para de abastecer com o néctar amarelo da verborragia. O Luto estranhamente quieto. Até que alguém cobrou isso e exigiu, com veemencia apoiada no direito, na razão, na ética e no quinto copo cheio, que o Luto se manifestasse.
- Eu não acho, já que vocês insistem na minha opinião, que a coisa seja assim tão feia, acho feia mas nem tanto, quanto querem que seja.
Depois de tonitruantes protestos e de uma bandeja com um resto de batatas fritas virada na mesa por mãos esbravejantes, o Luto prosseguiu:
- Pra mim, vocês falam de corrupção, propina e tudo isso aí, esse papo é como gorjeta pro garçom. Se o garçom atende bem, é simpático, se o pessoal gosta dele, no final, depois de pagar a conta, a gente gostou do cara, curtiu até as piadas dele,  rola uma gorjetinha por fora. O garçom fica feliz, o nosso, aqui, sempre fica, e, na próxima vez que a gente vem, a gente vem ao mesmo lugar com frequencia, ele atende melhor ainda e leva outra gorjeta. Isso é normal e não tem nada de criminoso. Certo?
Todos concordaram. O Luto surpreendeu com outra resposta:
- Errado! Se alguém quiser, pode levantar o ponto de vista de que a gorjeta não é contabilizada pelo estabelecimento, alguém pode alegar isso,  nem vai ser declarada pra Receita como renda do garçom. E pode-se dizer que, em troca desse dinheiro “por fora” o garçom favorece quem dá a melhor gorjeta, mesmo nós já demos a mais, atendendo melhor. Percebem? Basta usar as palavras certas e uma gorjeta pro garçom vira vários crimes, uma coisa pode virar crime sem ter sido vista assim antes, contra a Receita Federal, contra o direito de bom atendimento de uma clientela, contra o faturamento do restaurante, contra a igualdade entre garçons, profissionais que exercem exatamente a mesma função... Os garçons todos se tornam corruptos e os clientes todos, argumentos e provas não vão faltar, se tornam corruptores. Investigações serão iniciadas e só irão parar quando todos os garçons forem presos, prender malfeitor é o que todo mundo quer, e todos os clientes forem responsabilizados. Por uma coisa que ninguém estava fazendo como crime, todo mundo acha que é um estímulo normal a gorjeta, uma coisa que todos concordavam que era assim que se fazia. Tanto que todo mundo fazia! É assim que eu, não estou querendo impor, vejo essa história de políticos. Política sempre se fez assim, no Brasil e no mundo, hoje e na antiguidade. É bonito? Não! É certo? Acho que não! É decente? Duvido! Mas são criminosos e formam quadrilhas altamente mal-intencionadas? Não garanto! Afinal, em proporções gigantescas, estavam só levando a gorjeta do garçom.
Já estava na hora de todos irem embora e ninguém quis desenvolver a discussão com o Luto. Pedimos a conta, pagamos e nos despedimos amigavelmente, marcando outro papo pra semana seguinte. Mas o nosso garçom achou muito esquisito o fato de, desta vez, ninguém ter deixado a gorjeta dele. Por via das dúvidas.

quarta-feira, 10 de maio de 2017

MINHA MÃE

Meu pai decretou: Homem que é homem é culto, inteligente
e bem informado, sempre atualizado.
Minha mãe me ensinou a ler aos cinco anos. Quando completei seis, tentou me matricular numa escola pública e não fui aceito por não ter os sete anos exigidos. Ela pesquisou até encontrar uma escola particular que me aceitasse. Era uma escola próxima da nossa casa, no bairro do Macuco, em Santos. Mas, poucos meses depois, nos mudamos. Pra outra cidade! Pra Vicente de Carvalho, que, na época, ainda chamávamos de Itapema. Não dava pra eu ir àquela escola todos os dias. Era longe demais. Envolvia até uma viagem de catraia, um pequeno barco a motor que ainda hoje é usado em travessias na baixada santista. Minha mãe fez um acordo com a escola. Eu iria uma vez por mês pra fazer uma avaliação. Mas como eu aprenderia o necessário pra essa avaliação? Minha mãe pegava o currículo do mês e me dava aulas em casa. Todos os dias! Com horário normal de aula! Passei pro segundo ano com nota excelente. E sabendo ler muito bem. Meu pai achava que ler era importante. Meu tio, o falecido Zé Vieira, trazia muita coisa pra eu ler. Mas minha mãe foi quem me deu os meios necessários para que eu pudesse fazer isso, com gosto, pelo resto da vida.
Meu pai exigiu: Homem que é homem não depende de ninguém. É auto-suficiente!
Minha mãe, quando eu tinha uns oito ou nove anos, insistia pra que eu fizesse trabalhos caseiros, todos os dias. Eu ficava irritadíssimo! Enquanto os outros moleques estavam brincando de mocinho, empinando pipas, jogando bola, taco ou espeto, eu estava vendo como se fazia arroz, estendendo um lençol na minha cama, lavando louça, colocando fronha em travesseiro, enxugando pratos, varrendo a sala, passando pano no chão da cozinha, descascando batatas, fritando ovos, temperando bifes. Claro que isso tomava apenas uma ou duas horas do dia, mas pra mim parecia toda uma vida! Na verdade, ela até refazia as coisas depois. A intenção não era usar meu trabalho. Só muito mais tarde, quando me vi distante, sozinho e por minha conta, é que percebi o valor do que tinha aprendido. Vi que sabia mais sobre organização de uma casa e preparação do meu alimento do que imaginava. Meu pai me incutiu o orgulho da não dependência. Mas minha mãe foi quem me deu o conhecimento das coisas práticas pra que eu pudesse manter esse orgulho.
Meu pai determinou: Homem que é homem tem que ter uma profissão, um trabalho digno que ele faça muito bem feito, no qual ele seja, senão o melhor, um dos melhores.
Minha mãe, quando eu estava com mais ou menos doze anos, me apresentou um mundo profissional do qual eu nunca me separaria. Ela me ensinou os caminhos, com palavras ou apenas vivendo. Deixou clara a necessidade da pluralidade no ramo do qual vivia, dublando um filme hoje, fazendo uma novela na TV no dia seguinte, um espetáculo infantil no fim de semana, escrevendo e apresentando programas de rádio todas as noites. Meu pai exigiu de mim a dignidade de uma profissão na qual eu fosse bom. Minha mãe não só me deu essa profissão, que na verdade é mais de uma, como me mostrou como exercê-la bem e como ser respeitado nela.
Meu pai vaticinou: Homem que é homem constrói uma boa família e faz tudo por ela.
Minha mãe já tinha dado todas as ferramentas necessárias pra isso. A profissão com a qual manter a família, o apego aos componentes da família que faz com que se sacrifique qualquer coisa em nome dela, o amor que faz com que nunca pareça sacrifício, os paparicos compráveis como brinquedos, doces, roupas especiais, passeios, e os executáveis como um cheiroso, bonito e delicioso jantar.
Meu pai me disse como é um homem que é homem.
Minha mãe me ensinou a me tornar um. Passo a passo. Ano a ano. Pro resto da vida!
Dá pra homenagear uma mãe assim? Impossível! Nada seria suficiente. Só dá pra agradecer.

Valeu, mãe! Se você, alguma vez, já se sentiu amada por seus filhos e pelos descendentes deles, tenha certeza de uma coisa: é o mínimo que todos podemos fazer!

(Trecho do e-book O CRONISTA, à venda na Amazon)